Existem momentos no teatro que o tempo para, faz-se silêncio absoluto na plateia e o público parecer hipnotizado. É raro isso, mas quando acontece somos arremetidos a uma realidade outra, uma transcendência, um estado de epifania que prescinde de religião. É isso que tem sido as sessões de “Enquanto você voava, eu criava raízes”, novo espetáculo da Cia Dos à Deux, no Sesc Santo Amaro.
Indicado em várias categorias dos prêmios Shell (iluminação, cenário e figurino) e Cesgranrio (melhor espetáculo, direção, música, iluminação e cenário), o espetáculo uma dramaturgia de corpos, sem palavras, com imagens que remetem ao medo e sua superação. Estabelece uma primazia do imaginário, pois se há algo que pode nos salvar, não está na realidade. São quadros em movimento, em sofisticadas coreografias ampliadas por jogos de reflexos e estímulos sensoriais.
Os artistas André Curti e Artur Luanda Ribeiro, o Dos a Deux, trabalham juntos há 25 anos. Afirmam fazer um teatro gestual, mas o que fazem ainda não tem nome. Talvez nunca tenha, pois são trabalhos que fogem das categorizações possíveis de teatro, dança, pantomina ou performance. Juntos, fundam algo novo, para além das palavras e dos nomes. É expressão de uma nova epistemologia para as artes, para a experiência estética e para a fruição dos sentidos. São significantes que escapam de qualquer significação estática e deslizam incessantemente.
Em “Enquanto você voava, eu criava raízes”, seus corpos se fundem e se multiplicam, indo do Um ao infinito, como se manifestassem uma não-dualidade em que as categorias eu e outro deixassem de fazer sentido. É a contradição que nos move. Voar e criar raízes não se excluem, fazem parte de um mesmo movimento, indivisível e irredutível. As imagens parecem do mito da caverna ao osso lançado por Kubrick em sua odisseia no espaço, da natureza das raízes ao multiverso de Matrix, do suicídio a pulsões de vida.
O tempo é condensado, o espetáculo não chega a uma hora. Mas as imagens ecoam por dias e dias, como sementes plantadas próximas a raízes ou jogadas ao ar. Em comunhão, artistas e espectadores voam. E criam raízes.