Dueto para subversões

Valmir Santos

“Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam”. O neologismo “velhar”, por subentendido, salta das primeiras linhas do conto Fita verde no cabelo (Nova velha estória), de João Guimarães Rosa, de 1964, feito verbo a sugerir seres inertes diante da vida. Seres, por assim dizer, antípodas às personagens assalariadas, moradoras na periferia urbana e ora desempregadas em Mãos trêmulas, a peça em que a mulher que costura figurinos para teatro há 60 anos e o auxiliar de cozinha que exerceu a função por 50 anos são pródigos em nadar contra a maré. Coisa que a equipe de criação do espetáculo também o faz em termos de contrapés temporais e espaciais na narrativa e na encenação abertas ao insólito e ao cotidiano para falar de afetos transformadores profundos no encontro de sujeitos sociais atuados por Cleide Queiroz e Plínio Soares.

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Bordas e miolos da pólis e da história

Valmir Santos

Assim como a companhia Oficina Uzyna Uzona cumpriu um autodeclarado “desmassacre” em Os sertões, entre 2000 e 2007, quando montou cinco peças a partir da obra literária de Euclides da Cunha, pode-se dizer que o Grupo Clariô de Teatro levanta das bordas de Taboão da Serra com a zona sul de São Paulo, a seu modo, o “desmassacre” da Irmandade Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no sul do Ceará, referente a ataques ocorridos entre 1936 e 1937, há 86 anos, quatro décadas depois da Guerra de Canudos, e revisitado no espetáculo Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto, uma bem urdida síntese de sua cosmovisão comunitária e artística esculpida em 18 anos de trabalho.

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Coabitar sentidos do teatro

Valmir Santos 

Quando a arte olha no fundo dos próprios olhos enquanto procedimento criativo ela pode incorrer em risco de abraçar a autoimagem, afogando-se, como no mito de Narciso. Não é incomum o recurso de metalinguagem virar presa dele mesmo nas teias dos aspectos formais. Sentimento diverso do constatado em Banco dos sonhos, espetáculo-lago da Velha Companhia. Seu grau de experimentação carrega lírios e desassossegos por leitos e margens do teatro e da sociedade. Com a proeza de dar centralidade ao público instado a navegar por uma narrativa e reconstituir, consigo, a consciência de uma personagem, uma grande atriz, em aparente desagregação. 

A fim de proporcionar essa deriva, a companhia de São Paulo, que comemora 30 anos, presta diligente homenagem a duas dramaturgias. Uma de caráter universal, A gaivota, do russo Anton Tchékhov (1860-1904), definida pelo autor como uma comédia, e outra brasileira, Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), segundo o mesmo uma tragédia. 

No texto de Kiko Marques, que diz adotar como gênero o realismo onírico, o atropelamento de Alaíde por um automóvel e o desenrolar da história em plano tripartido (alucinação, memória e realidade cotidiana) é percebido na montagem como filigrana. O onirismo transborda sob o domínio gingado desse artista, também ator e diretor, em transmudamento com a prática da escrita para a cena desde pelo menos CAIS ou Da indiferença das embarcações (2012), dispondo ficção adubada por memórias biográficas ungidas às nacionais. 

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A condição da margem

Valmir Santos

Em Órfãs de dinheiro, o teatro está para o conto assim como este, para a literatura. O enxugamento intrínseco da narrativa breve, em que menos é mais, corresponde à tática de linguagem na concepção, texto e atuação de Inês Peixoto. Três histórias compõem o monólogo sobre mulheres subjugadas por estruturas patriarcais na família ou na sociedade sob condicionantes como honra, sexo, pobreza e xenofobia.

No trabalho paralelo ao grupo em que milita, o Galpão (MG), a atriz parece escutar João Guimarães Rosa (1908-1967). Quando indagado sobre a preferência pelo conto, em rara entrevista a Ascendino Leite, publicada em 1946, em O Jornal (RJ), sob o sugestivo título “Arte e céu, países de primeira necessidade”, o escritor declarou:

(…) o que me interessa, na ficção, primeiro que tudo, é o problema do destino, sorte e azar, vida e morte. O homem a ‘N’ dimensões ou, então, representado a uma só dimensão: uma linha, evoluindo num gráfico. Para o primeiro caso, nem o romance ainda não chega; para o segundo, o conto basta. Questão de economia.

A despeito das histórias curtas emergirem de injustiças perpetradas em razões de gênero, classe social e circunstâncias de uma refugiada, a artista imprime fluxo à condição da margem. Proporciona sentidos e reflexibilidades por trás de cada personagem que, por sua vez, imbricam tempos e vozes outras.

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A ignorância sob escrutínio em ‘Macacos’

Valmir Santos

Contar a História do Brasil a partir do genocídio do povo preto é o que promete e realiza o ator, dramaturgo e diretor Clayton Nascimento em Macacos, da Cia. do Sal (SP).

Da metade da encenação em diante o ator-narrador resume mais de cinco séculos de extermínio e estigmatização de povos indígenas e negros escravizados, lançando mão de extraordinária capacidade intelectual e vocação para estabelecer dialogismo . “A gente não domina nossa história.”

Versões oficiais sobre a formação do país são refutadas e recontadas pela perspectiva do jovem homem negro. Percorre violências remotas e nem tanto, diárias, que inclusive atingem o atuante. Ele as processa e devolve em conteúdos e análises ao repassar a historiografia a contrapelo.

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Transcendências pétreas

Em 2021, Um jardim para educar as bestas foi registrado em vídeo na praça Tempo Espaço, território que na verdade é uma exposição permanente ao ar livre, instalada no Museu Exploratório de Ciências da Unicamp, em Campinas (SP). Dali dá para contemplar nasceres e pores do sol, interagir com bússolas, lunetas ou teodolitos, instrumentos para medir ângulos horizontais e verticais. O ator Eduardo Okamoto e o pianista, compositor e arranjador Marcelo Onofri apresentaram-se à luz do dia no mirante de 360º de horizontes, sob a vastidão do céu azul, algumas nuvens brancas e raios solares. Uma performance sem público, propriamente dito, pois aqueles eram dias de isolamento social.

Na transmissão remota, havia um momento em que um galho suspenso pelas mãos do atuante parecia tocar o firmamento como se extensão da ponta do dedo humano (ou divino). Um ano e três meses depois, em curta temporada no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulista, integrando a programação de retomada da MITsp, o duo ocupa o tablado amadeirado como toda a parede de fundo, pé-direito alto. Os horizontes, agora, são por conta e risco do imaginário de cada uma e um que acompanha as justaposições de teatro, dança e música desse trabalho.

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Canto contra desencanto

A Cia. Luna Lunera dispensa reticências no título da peça E ainda assim se levantar. No entanto, sua base textual, e mesmo a sintaxe do espetáculo, é permeada de três pontos. As pausas surgidas entre falas, pensamentos ou gestos não representam necessariamente silêncios, omissões, titubeios. Antes, são rumores gerados por exaustão existencial.

Também são três atuantes a emendar experiências pessoais às respectivas personagens que tratam de angústias de um presente rasurado, ávido por dias melhores. Nesse universo fragmentado, a rotação dramatúrgica de tentativas calha como um alento no panorama de desencantos em que o país e o mundo andam metidos – e a rigor não de agora.

Expressões como “A gente está tentando” e “Vamos começar de novo” indicam vestígios beckettiano na dramaturgia de Marcos Coletta concebida em parceria com a companhia. Falhas e desvios são reconhecidos mutuamente pelo trio, numa dinâmica de dentro e fora, de crítica e autocrítica, movimento que a direção de Isabela Paes delineia como efeito de circularidade refletido na própria ocupação espacial conformada em arena. Afinal, “Este espetáculo não começou agora”, mais uma frase lançada ao público na busca artística por estabelecer uma relação de jogo difícil de ser concretizada, em boa parte, devido ao vão que distancia o palco frontal do teatro no Sesc Santo Amaro.

No entanto, essa dificuldade é atenuada por meio de um recurso elementar e assertivo, quando bem aplicado, como no caso. O público descobrirá como o ato de fechar ou abrir os olhos em sintonia com determinadas passagens pode interferir sensível e decisivamente no modo de fruir a obra. Há um tensionamento propositivo diante das modulações de afetos ao longo da narrativa.

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O corpo negro como lugar de memória

No início, há apenas a voz ─ e essa voz é. Em seguida, a voz escolhe um corpo para habitar: o corpo de uma mulher negra. E esse corpo também é. Assim, em Vaga carne, tanto a peça (2018) de Grace Passô quanto o média-metragem (2019) codirigido por ela e por Ricardo Alves Jr., voz e corpo ora se fundem, ora se confundem, se conformam e se confrontam. Toda uma história se narra nas modulações, nos tons, nos ritmos da voz ─ e em seus silêncios. O íntimo e o coletivo permeiam cada gesto, cada movimento do corpo, cada pequena coreografia ─ e suas pausas. Em sua performance, Passô mobiliza também o invisível e o indizível. Assistimos ao encontro entre voz e corpo no agora da encenação, mas as experiências que ambos carregam não se limitam ao tempo linear ou cronológico. Por fim, o desconcerto: o que vai ser do corpo, daquele corpo, quando a voz se desgrudar dele?

Vaga carne é um dos espetáculos citados pela poeta, ensaísta, dramaturga e professora Leda Maria Martins em Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela (Cobogó, 2021), como exemplo das criações artísticas brasileiras que têm reconfigurado a representação do negro em cena. Trata-se de um repertório crescente de poéticas, que, por meio de ousados procedimentos e elaborações estéticas, afirmam as corporeidades negras como episteme, exercitando uma memória cultural que atualiza acervos cognitivos e performáticos de matrizes africanas e afro-brasileiras. Um aporte urgente e fundamental para a cena teatral (e política) brasileira, que em muitos momentos ainda se revela resignada diante de narrativas desgastadas, modos de produção excludentes ou exclusivistas, estruturas colonialistas e racistas etc.

Como bem diz o título, os eixos do livro são tanto as poéticas do corpo-tela – esse corpo que é, ao mesmo tempo, corpus de saberes situados e lócus de memória ─ quanto performances que funcionam como verdadeiras “reservas mnemônicas”, entrelaçando o vivido e o sagrado em temporalidades curvas. Às leitoras e aos leitores mais familiarizados com o pensamento ameríndio, as potentes reflexões de Martins talvez façam eco, já que as práticas rituais de muitos povos indígenas do continente também são meios de transmissão de saberes e conexão com o invisível. E, para os setores mais tradicionais dos estudos cênicos, as abordagens da autora certamente são estimulantes e desvelam horizontes bem mais amplos do que aqueles estipulados pelo pensamento ocidental.

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Corpos matriciais da narrativa

A justaposição de obras gestadas no curso da pandemia, exibidas em tempo real, e de gravações de performances anteriores à crise sanitária permitiram ao público do Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia, o FILTE, atravessar coordenadas espaço-temporais produtivas em suas singularidades. No caso dos trabalhos internacionais da programação, que aconteceu de 22 a 28 de novembro, houve equilíbrio entre duas criações ao vivo e duas derivadas de arquivo e registradas, intuímos, sem supor que um dia seriam difundidas integralmente na rede mundial de computadores. Pelo menos três delas têm o corpo matricial em narrativas redimensionadas por meio de outras fisicalidades próprias das mídias que coabitam. 

O presente texto caminha ao lado de Curadoria – Palestra-performance, da dramaturga, atriz e pesquisadora Any Luz Correa Orozco, da Colômbia, ela que desenvolveu estudos no Brasil; Expectantes, parceria do Núcleo 2 – Coletivo de Teatro, de Uberlândia (MG), com o grupo Vendimia Teatro, da Colômbia; Noite, da CRL – Central Elétrica (Circolando), de Portugal; e Altíssimo, do núcleo TREMA!, surgido no Recife e atualmente radicado em Portugal.

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