Ao chegar à entrada do Teatro do Sesi-SP cerca de dez minutos antes de o espetáculo começar, havia uma senhora, de quem ainda nenhum de nós espectadores sabíamos o nome, aflita para fazer xixi sem achar o banheiro e para pegar o metrô rumo à estação Sé, na capital paulista.
Era a dona Genuína, personagem centenária de Voz de vó, caracterizada no estilo cômico, que nesse espetáculo representa a dor e a delícia de viver a fase final da existência com o esquecimento devido ao alzheimer.
A peça arrebata a plateia logo no início, quando outros dois personagens – uma dupla de atores músicos – mobilizam a memória de crianças e adultos pedindo sugestões de canções, que entoam junto com o elenco: “Samba Lelê” (Ernesto dos Santos, Donga; sic), “Alecrim Dourado” (Luiz Cláudio de Castro, 1935; sic) ou “As Pastorinhas” (Braguinha e Noel Rosa).
Daí para a frente é uma brincadeira só – três passos de formiga, dois passos de pinguim; janela janelinha, porta campainha, entre outras. Em Voz de vó, se encontram justapostos, em procedimento cubista, recursos dramáticos, musicais, de poesia sonora e visual, de iluminação, de videografismo, de jogos de brincantes e de esquetes da comédia circense.
O enredo faz a ordenação metafórica do pensamento de dona Genuína e instaura o conflito maior: essa personagem fugiu de casa. E agora? Ih, os espectadores só descobrem onde ela está se localizarem a casa de vó Genuína.
O palco é um caleidoscópio que põe em movimento a máquina do teatro, a deus ex machina: múltiplas projeções ampliam a ação e a reverberam. Enquanto dona Genuína passa em vídeo montada num galo, por exemplo, os atores dialogam entre si sobre a vovó e sobre eles próprios e encenam passagens do passado e do presente com música ao vivo e coreografia.
Um telão transparente com imagens fixas e em movimento e a exibição de poemas em diferentes telas desenham as personas, os objetos, as palavras e os assuntos tratados, muitas vezes projetados no corpo das personagens na amplidão do palco, em fascinante cenografia (direção de arte), de Analu Prestes.
O resultado é a subversão dos significantes que compõem a matéria plástica, como no sonho em que as imagens são costuradas e bordadas umas sobre as outras, em procedimento rizomático, como faz a atriz Clarisse Derzié Luz em interação com a plateia infantil: combina que o número da casa da vovó é 123 amarelo Ah! Ah! Ah!
Intercambiáveis, as narrativas complementam os significados umas das outras e adquirem o mesmo peso, dando espaço para a renovação dos elementos dramáticos e dramatúrgicos com o fito de oferecer um teatro em que o grande protagonista é a proposição estética.
Assim, passarinho pode “voar fora da asa”, é possível existir “memória rã” e o sapo “ser uma bola”. Versos apresentados evocam a poética de Manoel de Barros (1916-2014), escritor do Mato Grosso que sabia “montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos” e “fazer uma pedra dar flor” num procedimento em poesia e antropologia (Lévi-Strauss; 1908-2009) conhecido como “bricolagem” no sentido figurado da reorganização metafórica do sistema de signos mitopoéticos.
A atriz que interpreta vó Genuína, Clarisse, domina a atenção do público pela clareza e limpidez das expressões emotivas, do ritmo que impõe à interpretação dos demais atores e das suas falas, que saltam da poesia lírica para as cenas, arquitetadas com astúcia para deixar a infância correr livremente e realizar as peraltices do envelhecimento.
A direção, de Sara Antunes, que também assina a dramaturgia, mobiliza ainda o cinema popular de massa ao evocar o filme The Adam project, sobretudo no jogo de ser criança (Walker Scobell) e de ser adulto (Ryan Reynolds) com o encontro dos mesmos personagens no passado e no futuro, na magnífica atuação de quatro atores nos papéis de personagens desdobrados: os netos Tito adulto (Demian Pinto) e Tito criança (Antônio de Oliveira), Bento homem (Gui Calzavara) e Bento menino (Benjamin de Oliveira).
A potente atriz Vera Holtz aparece muito à vontade em vídeo como a filha da protagonista. Holtz fez a supervisão artística do espetáculo e sabe como ninguém imitar a entonação das mães chamando seus filhos para fazer alguma coisa, seja para ir à ceia de Natal, seja para cantar parabéns no aniversário de 103 anos da vovó: “Ô, menino, vem para dentro”, está na hora!
Por algumas décadas não houve no teatro para crianças montagem com tamanha excelência em transdisciplinaridade, poesia e interpretação de ator como Voz de vó, equivalente na força de “levar o mar para dar um mergulho”.
Ficha técnica
Dramaturgia e direção: Sara Antunes. Supervisão artística: Vera Holtz. Direção de arte – cenário e figurino: Analu Prestes. Direção musical: Demian Pinto e Gui Calzavara. Desenho de luz: Wagner Pinto. Direção de movimento e preparação corporal: Victoria Ariante. Programação visual: Analu Prestes e Camila Landulfo. Desenhos, colagens e bordados: Analu Prestes. Videografismo: Vic Von Poser. Preparação vocal: Patricia Antoniazi. Elenco (adultos): Clarisse Derzié Luz, Demian Pinto e Gui Calzavara. Elenco infantil: Antônio de Oliveira (Tito), Benjamim de Oliveira (Bento), Nick Araújo (Bento), Pietro Leite (Tito), Rodrigo Viegas (Bento). Participação afetiva: Analu Prestes e Vera Holtz. Visagismo: Kazuo Hair Design. Adereços: palhAssada ateliê soluções cenográficas.