Ferdinando Martins é professor doutor na ECA-USP, onde coordena o Centro de Documentação Teatral. Jurado do Prêmio Shell de Teatro e da APCA. Realiza pesquisas sobre teatro, performance e produção cultural nas Américas e no Oriente Médio.

7Pisos

Não somos todos iguais. Nas lógicas da dominação, nossos corpos valem mais ou valem menos de acordo com critérios alheios à nossa vontade. A peça 7PISOS, do grupo Folias, revela mecanismos que conduzem o paciente Giuseppe Corte, escritor com sintomas leves de uma doença não identificada, a um quadro cada vez pior. Não se trata do agravamento de uma enfermidade, mas sim da submissão de um corpo tornado abjeto pelo discurso médico à ordem dominante. Um homem negro, artista, inteligente converte-se ao longo da apresentação em um monstro moribundo e aparvalhado. 

A dramaturgia, de Paloma Franca Amorim, teve como ponto de partida em um conto de Dino Buzatti, escritor e dramaturgo italiano que em várias obras trata de processos de alienação e alheamento dos sujeitos de maneira involuntária, revelando como somos cruelmente atravessados por sistemas e estruturas que querem pacificar os corpos como exercício de poder. Em 7PISOS, um hospital emprega um método particular de tratamento, dividindo os andares de acordo com a suposta gravidade dos enfermos. 

Logo de entrada, atores vestidos de médico destacam-se em um cenário com poucos elementos. As roupas brancas se impõem como produtoras de uma verdade fajuta, contrastando com o corpo negro que sintetiza vários outros. Não por acaso, mesclam-se em Giuseppe tantos outros negros e negras, de Amarildo a Marielle Franco. Gradualmente, o público acompanha a descida ao inferno de Giuseppe. O dispositivo já bastante empregado pelo Folias de abrir a porta do teatro para a rua indica, em 7PISOS, o pertencimento de artistas ao mundo dos boêmios e dos excluídos, dos que não se encaixam nas estruturas de dominação. 

É um espetáculo incômodo, pois revela que nossos limites e impotências diante dos mecanismos de exclusão e da taxonomia dos corpos. Mas é uma abordagem necessária nesses tempos de neonazismos e ascensão da direita tresloucada, pois só haverá algum abalo nas estruturas se a loucura de Giuseppe e de todos os artistas persistirem em se revelar.