Ferdinando Martins é professor doutor na ECA-USP, onde coordena o Centro de Documentação Teatral. Jurado do Prêmio Shell de Teatro e da APCA. Realiza pesquisas sobre teatro, performance e produção cultural nas Américas e no Oriente Médio.

A Herança – parte I

Em 1969, estreava na Broadway Os rapazes da banda, primeira peça de Mart Crowley, escrita a pedido de Vanessa Redgrave que viu nas histórias que esse jovem gay lhe contava algo além de conversa jogada fora. O texto de Crowley se passava em um apartamento de Nova York, no qual amigos gays se reuniam para um jantar e as mais diferentes questões do universo homoerótico emergiam.

Em larga medida, podemos pensar A Herança, escrita pelo também americano Matthew López, em cartaz no Teatro Vivo, como a transposição do legado de Crowley para o século XXI. A peça conta a história de Henry, interpretado por Reynaldo Gianecchini, um homossexual de meia idade e conservador, que se envolve com o jovem Eric, papel de Bruno Fagundes. Eric havia sido amigo do ex-companheiro de Henry, que em décadas anteriores abrigava em sua casa vítimas da epidemia de Aids, em uma época que o diagnóstico da doença era uma sentença de morte e nem se sonhava com PREPs ou PEPs.

Sucesso na Broadway desde sua estreia em 2019, A Herança ganhou quatro prêmios Tony. Em São Paulo, foram mais de três mil ingressos vendidos antes da estreia. Tamanho burburinho talvez tenha ofuscado os méritos da montagem, exagerando o foco nas celebridades em cena. Uma matéria no maior jornal do país dedicou três parágrafos à cor do cabelo de Gianecchini. Por outro lado, um patrulhamento gay mais feroz tem chamado o espetáculo de “padrãozinho”, burguês, elitizado.

Nada disso, porém, ofusca o brilhantismo de A Herança. A direção, de Zé Henrique de Paula, evidencia uma abordagem poética e cirúrgica de questões que ronda o universo gay. Em uma perspectiva temporal, estão presentes as diferenças históricas entre a geração. Se nos anos 1990 a discussão principal era a epidemia de Aids, hoje é o casamento igualitário, a adoção e os afetos em tempos de aplicativos. Entre os mais velhos e os mais jovens, a solidão e o medo são os mesmos, só mudam de forma.

Há momentos líricos, que comovem e mobilizam afetos, ao mesmo tempo que as contradições e o contraste com a realidade circundante o transformam, também, em documento. Sem querer ser um libelo político, A Herança defende direitos e cidadania, mostra como o conservadorismo também se faz presente entre homossexuais. Herdeira do realismo estadunidense, tem pitadas do universo fantástico. Esteticamente, o kitsch minimalista dos gays dos anos 1990 é substituído por cenários e figurinos limpos, como a revelar as personagens de forma crua e honesta.

Há que se destacar, também, as atuações de Rafael Primot e Marco Antônio Pâmio. Rafael, que literalmente quebrou o pé na estreia, criou uma interpretação nuançada, manifestando as contradições das novas epistemologias de sexo e afeto. E Pâmio é responsável por um dos momentos mais fortes e lindos de A Herança, em um extenso monólogo no final de primeira parte. Dia 24 de março, estreia a continuação, com uma aguardada participação de Miriam Mehler. Tudo em A Herança é bem-feito e isso incomoda. Impossível, mesmo, é ficar indiferente.