Ferdinando Martins é professor doutor na ECA-USP, onde coordena o Centro de Documentação Teatral. Jurado do Prêmio Shell de Teatro e da APCA. Realiza pesquisas sobre teatro, performance e produção cultural nas Américas e no Oriente Médio.

Chega de saudade!

Nos cem anos da Semana de 22, muito se tem falado sobre as marcas deixadas pela cultura dominante na arte brasileira, em especial a contradição entre submeter-se a padrões estrangeiros e buscar uma expressão brasileira autóctone. A tensão entre o erudito e o popular emerge no bojo desses debates e as conclusões são difíceis de serem obtidas. 

Chega de Saudade, da Aquela Cia (com direção de Marco André Nunes e texto de Pedro Kosovski) coloca em cena essas questões de maneira irreverente, abrindo o debate para novos temas e novas abordagens. No palco, corpos negros assumem papéis dos nomes conhecidos da Bossa Nova. Nara Leão ser interpretada por Blackyva muda muita coisa. 

A simples presença de artistas negros já subverte as abordagens corriqueiras sobre esse estilo e movimento musical. Nas histórias da Bossa Nova, Alaíde Costa e Johnny Alf são apresentados marginalmente – e o fato de serem negros em um grupo de brancos, classe média da Zona Sul carioca, explica esse apagamento. 

Ainda que fale de música, Chega de Saudade não é um musical. Há muita música no espetáculo, mas a abordagem aproxima-se mais das investigações anteriores da Aquela Cia, como Caranguejo Overdrive e Guanabara Canibal, que partem dos fatos para fazer uma espécie de auditoria de nossa história. É daqueles espetáculos que mudam nossas certezas, chacoalhando com humor nossas mais arraigadas convicções.