Valmir Santos
Quando a arte olha no fundo dos próprios olhos enquanto procedimento criativo ela pode incorrer em risco de abraçar a autoimagem, afogando-se, como no mito de Narciso. Não é incomum o recurso de metalinguagem virar presa dele mesmo nas teias dos aspectos formais. Sentimento diverso do constatado em Banco dos sonhos, espetáculo-lago da Velha Companhia. Seu grau de experimentação carrega lírios e desassossegos por leitos e margens do teatro e da sociedade. Com a proeza de dar centralidade ao público instado a navegar por uma narrativa e reconstituir, consigo, a consciência de uma personagem, uma grande atriz, em aparente desagregação.
A fim de proporcionar essa deriva, a companhia de São Paulo, que comemora 30 anos, presta diligente homenagem a duas dramaturgias. Uma de caráter universal, A gaivota, do russo Anton Tchékhov (1860-1904), definida pelo autor como uma comédia, e outra brasileira, Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), segundo o mesmo uma tragédia.
No texto de Kiko Marques, que diz adotar como gênero o realismo onírico, o atropelamento de Alaíde por um automóvel e o desenrolar da história em plano tripartido (alucinação, memória e realidade cotidiana) é percebido na montagem como filigrana. O onirismo transborda sob o domínio gingado desse artista, também ator e diretor, em transmudamento com a prática da escrita para a cena desde pelo menos CAIS ou Da indiferença das embarcações (2012), dispondo ficção adubada por memórias biográficas ungidas às nacionais.
https://teatrojornal.com.br/2023/03/coabitar-sentidos-do-teatro/